Na Parashá desta semana, Vaierá (literalmente "E apareceu"), a Torá começa a descrever um dos personagens mais enigmáticos e contraditórios da Torá: Lót, o sobrinho de Avraham Avinu. Há muitas situações nas quais vemos certo nível de retidão em seus atos, mas há também muitos casos que demonstram graves falhas em suas escolhas. Por exemplo, somente ele e Sara acompanharam Avraham em sua jornada espiritual para Eretz Israel, demonstrando uma disposição para o autosacrifício e para aprender lições de Avraham. Lót demonstrou que aprendeu bem as lições ao se sobressair na característica de Chessed (bondade), chegando ao ponto de até mesmo arriscar sua vida para cumprir a Mitzvá de receber convidados. Ele também é muito elogiado pela Torá por seu autocontrole, ao não revelar aos egípcios que Avraham e Sara eram casados, já que ele era o herdeiro direto de Avraham e, caso o matassem, receberia seus bens. Lót era tão cuidadoso com as Mitzvót que a Torá registra que ele comia Matzót em Pessach. E mesmo quando a Torá descreve erros de Lót, o faz como se fossem meros "escorregões", não atitudes intencionais de rebeldia contra D'us. Por outro lado, Lót demonstra em diversas situações um amor incontrolável pelo dinheiro e pelas imoralidades, que o levaram a se afastar de Avraham e escolher viver em Sdom, uma cidade com muitas riquezas, mas repleta de habitantes Reshaim (malvados). Além disso, mesmo sabendo o que havia ocorrido entre ele e sua filha mais velha, quando ela o embebedou, Lót novamente se deixou embebedar pela filha mais nova na noite seguinte. Os pastores das ovelhas de Lót também se baseavam em permissões equivocadas para que suas ovelhas pastassem em campos particulares, cometendo roubo. Mas o mais grave de tudo é que, de acordo com o Midrash (parte da Torá Oral), quando Lót se separou de Avraham, ele anunciou: "Eu não quero Avraham e nem o D'us dele". Este Midrash é particularmente difícil de ser entendido, pois mesmo depois de Lót ter se separado de Avraham, aparentemente ele continuou reconhecendo D'us e cumprindo Suas Mitzvót. Ele continuou recebendo convidados e até mesmo comendo Matzót em Pessach. Como alguém pode viver uma vida tão contraditória? Explica o Rav Yehonasan Gefen que, para entendermos Lót, precisamos nos aprofundar um pouco mais em um incidente que ocorreu quando Yaacov voltou para casa. Antes de se reencontrar com seu irmão Essav, que vinha em sua direção com um imenso exército, Yaacov mandou uma mensagem: "Com Lavan eu vivi e permaneci até agora" (Bereshit 32:5). Rashi (França, 1040 - 1105) explica que Yaacov estava mandando ao seu irmão a seguinte mensagem: "Apesar de ter morado com o maldoso Lavan, eu cumpri as 613 Mitzvót e não aprendi dos maus atos dele". A mensagem de Yaacov era que, independente da superioridade bélica de Essav, ele se sentia protegido por D'us, por ter se mantido uma pessoa íntegra apesar das más influências. Porém, desta explicação de Rashi surge um grande questionamento: se já está escrito que Yaacov cumpriu todas as Mitzvót, por que foi necessário escrever também que ele não aprendeu dos maus atos de Lavan? Isto não é óbvio? Responde o Rav Yaakov Yitzchok Ruderman zt"l (Bielorússia, 1900 - EUA, 1987) que estes dois conceitos, o cumprimento das Mitzvót e aprender com os maus atos dos Reshaim, não necessariamente andam juntos. A pessoa pode cumprir todas as Mitzvót da Torá e, apesar disso, ser influenciada por valores que são estranhos à Torá. A pessoa pode saber a verdade, de que existe um D'us e que Ele entregou a Torá ao povo judeu no Monte Sinai, e este reconhecimento faz com que ela cumpra o que foi comandado, em especial pelo medo das consequências, e mesmo assim suas aspirações na vida podem não coincidir com a visão da Torá. Esta pessoa pode viver uma vida voltada ao objetivo de acumular bens materiais, prazeres, poder e honra e, ao mesmo tempo, não quebrar explicitamente e intencionalmente nenhuma Mitzvá da Torá. Lót é um exemplo clássico deste tipo de "vida dupla". Isto pode ser observado em dois versículos da Parashá da semana passada, Lech Lechá. Quando a Torá descreve a saída de Avraham para a Terra de Israel, está escrito: "Avram foi, conforme D'us comandou, e Lót foi com ele" (Bereshit 12:4). No versículo seguinte está escrito: "Avram pegou Sarai, sua esposa, e seu sobrinho Lót" (Bereshit 12:5). O primeiro versículo nos ensina que, em um primeiro momento, Lót foi por vontade junto com Avraham. Porém, depois a linguagem do versículo é "Avram pegou", indicando que Lót teve que ir forçado. Isto nos ensina que havia duas forças conflitantes guiando as ações de Lót. Por um lado ele reconhecia que havia um único D'us e que esta verdade exigia que ele acompanhasse Avraham em sua jornada espiritual. Entretanto, apesar de saber a verdade, seus desejos de vida não necessariamente incluíam a disposição de deixar para trás toda a sua vida material e o seu conforto para se envolver em uma busca espiritual. Lót amava suas posses materiais e, por isso, viajar para uma terra estranha, vagando como um pobre, certamente não fazia parte dos seus planos de vida. Com este esclarecimento é possível entender a "vida dupla" de Lót. Por um lado ele reconhecia a verdade dos ensinamentos de Avraham e as obrigações que acompanham este reconhecimento. É por isto que em nenhum momento ele cometeu transgressões de forma descarada. Ele comia Matzót em Pessach e cumpria a Mitzvá de receber convidados, pois sabia que aquilo era exigido dele. Entretanto, sua aspiração de vida não era alcançar a proximidade de D'us e se desenvolver espiritualmente. Ele se deixava levar pelos desejos físicos, simbolizados pelo dinheiro e pela imoralidade. Ele não cometia transgressões de forma flagrante, mas no fundo tudo o que ele queria era saciar seus desejos. Por isso ele "se permitiu" novamente ser embebedado pela filha mais nova, para preencher seus desejos. Ele preferiu abandonar Avraham, o maior modelo de retidão e espiritualidade da humanidade, e viver em Sdom, uma cidade de pessoas corrompidas e imorais, demonstrando seu desejo de uma vida de materialismo, não de espiritualidade. Seus atos não eram "tecnicamente" proibidos, mas refletiam a verdadeira inclinação de seu coração. Quando o Midrash diz que Lót afirmou "Eu não quero Avraham e nem o D'us dele", não significa que Lót queria deixar de seguir os mandamentos de D'us. O que Lót rejeitava era a forma de Avraham ver a vida, que enfatizava a proximidade com D'us mesmo nos pequenos atos do cotidiano, mesmo no que não era "tecnicamente" uma transgressão. Quando uma pessoa vive reconhecendo a verdade de D'us e de Sua Torá, mas ao mesmo tempo dedica a vida a alcançar objetivos materiais, isto é inevitavelmente transmitido aos seus filhos e alunos, que seguirão o seu mau caminho e se corromperão ainda mais. É por isso que os pastores de Lót cometiam roubo. Em nenhum momento a Torá afirma que Lót os instruiu a roubar, porém eles foram fortemente influenciados pelo amor aos bens materiais de Lót. Eles deram prioridade ao objetivo de enriquecer, ao invés de dar prioridade ao objetivo de ser honesto. A consequência é que a pessoa se torna "não intencionalmente" desonesta, buscando desculpas duvidosas para justificar seus maus atos. O mesmo podemos enxergar nas filhas de Lót. O Midrash afirma que o ato delas de embebedar o pai era com intenções de imoralidade, enquanto o Talmud (Oraiot 10a) afirma que a intenção delas era pura, pois acreditavam que o mundo inteiro havia sido destruído e era necessário repovoá-lo. A explicação desta contradição é que as filhas de Lót herdaram do pai os desejos conflitantes e não sabiam lidar com eles. Isto se propagou também para as futuras gerações de Lót. Dele saíram Ruth e Orpá, as filhas de Eglon, rei de Moav. Tanto Ruth quanto Orpá passaram por esta escolha difícil: viver uma vida baseada na verdade ou uma vida de busca de prazeres materiais. Enquanto Ruth escolheu seguir sua sogra Naomi para Eretz Israel, abrindo mão de sua realeza e escolhendo uma vida de simplicidade e dificuldades, mas com espiritualidade, Orpá decidiu voltar para casa de seus pais, para sua vida de luxos e conforto. Orpá infelizmente fez a mesma escolha equivocada de Lót e, de acordo com o Midrash, no mesmo dia em que voltou para casa, ela cometeu muitos atos vulgares de imoralidade. O bisneto de Orpá foi Goliat (Golias), um homem completamente desprovido de espiritualidade. Já Ruth fez a escolha certa, escolheu a verdade. Sabia que teria um caminho difícil a percorrer, mas tinha a certeza que era o único caminho verdadeiro. Seu bisneto foi David HaMelech, um homem completamente conectado com D'us, e dela também futuramente virá o Mashiach. Nosso trabalho neste mundo é repetir a escolha de Ruth, fazendo com que o reconhecimento da verdade seja a força motriz das nossas escolhas. Isto não é fácil na sociedade na qual vivemos. De acordo com a Sociedade Ocidental, a fonte da nossa alegria e sucesso é a satisfação material: dinheiro, honra e poder. Infelizmente é possível a pessoa viver uma vida inteira cumprindo as Mitzvót e, ao mesmo tempo, ser guiada por estes objetivos de vida equivocados. E se pensarmos que não há nenhum problema viver desta maneira, Lót nos ensina que certamente o cumprimento das Mitzvót será prejudicado em todos os momentos em que a pessoa entrar em um conflito de interesses entre estas duas forças. Devemos sempre nos questionar se o nosso principal objetivo é ganhar a vida ou estarmos próximos de D'us. Não há nada de errado em se preocupar com o nosso sustento, mas isto deve ser apenas um meio dentro de um objetivo maior. Nossa busca pelo sustento deve ser com a intenção de nos dar tranquilidade e a possibilidade de vivermos uma vida de Torá e cumprimento das Mitzvót. Se a pessoa vê seu sucesso profissional como a fonte de toda a sua felicidade, certamente acabará se afastando da espiritualidade. Nossas escolhas também são importantes para as futuras gerações, pois influenciarão também nossos filhos e outras pessoas em volta. Que possamos fazer como Ruth e, com nossas escolhas corretas, possamos contribuir para a vinda do Mashiach. Shabat Shalom R' Efraim Birbojm |
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