Nesta semana recomeçamos o ciclo de leitura da Torá com o Sefer Bereshit, também conhecido como "Sefer HaIetsirá" (o Livro da Criação), que descreve a construção física e espiritual da humanidade. E a Parashat Bereshit (literalmente "No início") descreve a criação do mundo e, no sexto dia, a criação de Adam Harishon, o primeiro ser humano. Porém, diferente de todas as outras criaturas, que foram criadas macho e fêmea, o ser humano foi criado sozinho. A Torá então afirma que "Não é bom o homem estar sozinho. Farei para ele uma 'ajuda diante dele'" (Bereshit 2:18), referindo-se à criação da primeira mulher, Chavá. Porém, este versículo desperta alguns questionamentos. Em primeiro lugar, por que a Torá diz que não era bom o homem estar sozinho? Há Midrashim (parte da Torá Oral) que afirmam que Adam vivia no Gan Éden, um lugar paradisíaco, e era servido pelos anjos. Então o que faltava para ele? Além disso, nos chama a atenção a linguagem utilizada pela Torá, pois "Ezer Kenegdo", normalmente traduzido como "uma ajuda diante dele", literalmente significa "uma ajuda contra ele". Mas como alguém pode ser uma ajuda sendo "do contra"? Explica o Talmud (Yevamot 63a) que, na verdade, a Torá está nos ensinando que se o homem tiver méritos, então sua esposa será "Ezer", isto é, uma ajuda. Porém, se ele não tiver méritos, então sua esposa será "Kenegdo", isto é, vai acabar indo contra ele. Entretanto, esta explicação do Talmud desperta outro questionamento. O entendimento mais simples do versículo é que as palavras "Ezer Kenegdo" se aplicam apenas a uma única pessoa, não a dois tipos diferentes de pessoas. Por que o Talmud aparentemente tirou o versículo de seu contexto mais simples? Explica o Rav Meir Rubman zt"l (Israel, século 20) que o ser humano tem a tendência de achar que está sempre certo, como nos ensina o mais sábio de todos os homens, Shlomo Hamelech: "Todos os caminhos da pessoa são retos aos seus olhos" (Mishlei 21:2). É parte da natureza humana a pessoa enxergar apenas suas qualidades e ignorar seus defeitos. E mesmo quando outras pessoas chamam sua atenção por algum erro cometido ou por algum traço de caráter negativo, em muitos casos a pessoa não confia na opinião do outro, pois fica na dúvida se aquele que está chamando sua atenção realmente quer o seu bem. Desta maneira, fica muito difícil a pessoa chegar à perfeição, pois ela não enxerga os defeitos que precisa consertar e nem confia nas pessoas que apontam suas falhas. Então, o que fazer? D'us, em Sua bondade infinita com as Suas criaturas, disse: "Não é bom o homem estar sozinho", pois desta maneira ele nunca chegará à perfeição. "Farei para ele uma 'Ezer Kenegdo'", isto é, darei para ele uma boa esposa, como afirma o Talmud (Yevamot 63a): "Uma boa esposa é um presente precioso". A esposa que D'us deu a Adam Harishon, e futuramente para todos os seus descendentes, tinha duas grandes qualidades: por um lado ela era "Kegufo", isto é, como se fosse parte do seu próprio corpo, e por isso está sempre preocupada e comprometida com o bem estar do seu marido. Esta qualidade da esposa está indicada na linguagem "Ezer". Porém, por outro lado, a esposa é, no final das contas, uma pessoa que olha seu marido "de fora" e, por isso, consegue enxergar seus defeitos e falhas nos traços de caráter, o que está indicado na palavra "Kenegdo" Se o marido tem méritos, então ele utilizará esta qualidade de "Kenegdo" apenas como parte da "Ezer" que ela pode lhe oferecer, isto é, a esposa estará dando uma ajuda verdadeira e honesta ao auxiliá-lo em seu crescimento espiritual e em seu conserto. Isto se expressa nos momentos em que a esposa consegue apontar os erros de seu marido e o ajuda a chegar à perfeição. Mas se o marido não tem méritos, então ocorre justamente o contrário, pois a esposa utiliza está força de ser "Ezer" justamente "Kenegdo", ajudando-o a preencher todos os seus desejos e vontades, o que é, de acordo com a visão verdadeira, algo que apenas prejudica o marido e o afasta da perfeição. Portanto, a linguagem da Torá "Ezer Kenegdo" se aplica a uma única pessoa. Se ele tem méritos, sua esposa utilizará o "Kenegdo" como um "Ezer" para ajudá-lo a chegar à perfeição. Porém, se ele não tem méritos, então ele utilizará seu "Ezer" para ir "Kenegdo", isto é, afastá-lo cada vez mais da perfeição. Encontramos um exemplo disto em Avraham e Sara. Avraham tinha um filho, Ishmael, com a escrava Hagar. Sara percebeu que Ishmael tinha uma índole péssima, a ponto de cometer os piores tipos de transgressão. Ela teve medo que a convivência de Ishmael com seu filho Itzchak traria ao menino más influências e, por isso, exigiu que Hagar e Ishmael fossem expulsos de casa. Avraham não gostou da sugestão de Sara, como diz o versículo "e a coisa foi muito ruim aos olhos de Avraham" (Bereshit 21:11), isto é, ele achava inconcebível a ideia de expulsar seu próprio filho de casa. Ele tinha esperanças de que Itzchak traria boas influências a Ishmael. Porém, D'us falou para Avraham: "Tudo o que Sara te disser, escute a voz dela" (Bereshit 21:12). Avraham estava "subornado" pelo amor que sentia pelo seu filho e, por isso, não enxergava o óbvio, que Ishmael desviaria Itzchak do caminho correto e não o contrário. Sara, que olhava a situação "de fora", conseguiu utilizar sua força de "Kenegdo" para ajudar seu marido. Avraham teve o mérito de casar com uma esposa que o ajudou a chegar à perfeição. Mesmo que parecia algo ruim aos olhos de Avraham, com a ajuda de sua esposa ele conseguiu fazer o que era correto. Entretanto, a nossa Parashat traz um exemplo do lado contrário. Chavá deu a Adam um fruto para que ele comesse, sobre o qual está escrito "a árvore era boa para comer e agradável aos olhos" (Bereshit 3:6). À primeira vista parece que Chavá era uma esposa dedicada, que se preocupava com o bem estar do seu marido. Porém, sabemos que aquele era justamente o fruto que D'us os havia proibido de comer. Ao comer daquele fruto, Adam despencou espiritualmente, trazendo consequências negativas para si mesmo e para seus descendentes. Portanto, Chavá utilizou sua força de "Ezer" para causar algo "Kenegdo", pois através do seu ato ela trouxe ao seu marido, e ao mundo todo, morte e escuridão. Este ensinamento trazido pela Parashat está muito conectado com um conceito fundamental para o nosso crescimento espiritual: desenvolver o amor pelas críticas. Nosso ego não nos permite aceitarmos críticas. Fugimos de reconhecer os nossos erros e enxergar os nossos defeitos. D'us nos deu a oportunidade, através do casamento, de estarmos com alguém que amamos e confiamos e que, ao mesmo tempo, pode nos ajudar a enxergar os nossos erros. As críticas de alguém que quer o nosso bem e consegue nos analisar sem os nossos subornos são um verdadeiro trampolim para o nosso crescimento espiritual. É um presente que D'us nos deu, mas que depende dos nossos méritos e da nossa busca pela verdade. Quanto mais estivermos dispostos a escutar críticas, não importando de quem venham e como venham, maior a chance de crescermos e alcançarmos os nossos objetivos espirituais. SHABAT SHALOM R' Efraim Birbojm |