Nesta semana começamos o quarto Livro da Torá, Bamidbar, que retoma a narrativa dos acontecimentos mais marcantes do povo judeu nos quarenta anos em que permaneceram no deserto. Infelizmente alguns dos acontecimentos incluem tragédias que marcaram para sempre a nossa história, como o episódio dos espiões. Na realidade, quando a Torá retoma nesta Parashá a narrativa dos acontecimentos do deserto, o povo judeu estava prestes a entrar na Terra de Israel, inclusive já fazendo seus primeiros preparativos, mas o episódio dos espiões causou com que eles ficassem quarenta anos no deserto, esperando que aquela geração morresse e apenas uma nova geração tivesse o mérito de entrar em Israel. Porém, a Parashá desta semana, Bamidbar (literalmente "no deserto"), parece fugir um pouco desta ideia, já que aparentemente ela não descreve nada muito marcante em termos de acontecimentos, trazendo apenas a contagem do povo judeu, divididos por Tribos, e a posição dos acampamentos. Por que aparentemente esta Parashá não traz nada tão importante e significativo como as outras Parashiót do Sefer Bamidbar? E por que trazer a contagem do povo, de forma tão detalhada? O que isso nos acrescenta 3.300 anos depois? Este questionamento, na realidade, somente existe quando não entendemos o que as contagens representam. Esta não é a primeira contagem do povo judeu, eles já haviam sido contados duas vezes no Sefer Shemot, uma vez logo após a saída do Egito e outra vez logo após a transgressão do Bezerro de ouro. O Ramban (Espanha, 1194 - Israel, 1270) traz três motivos pelos quais D'us fazia constantemente a contagem do povo judeu. Em primeiro lugar, D'us queria ressaltar o crescimento milagroso do povo, que havia chegado ao Egito como uma família de apenas setenta pessoas e, duzentos e dez anos depois, já eram mais de três milhões. Isso mostrava o quanto D'us amava o povo judeu e a enorme Berachá de "crescer e multiplicar" que eles haviam recebido. Da mesma forma, D'us também os contava após as perdas significativas de vidas, como ocorreu no episódio do Bezerro de ouro. Isso nos ensina que todo judeu é importante aos olhos de D'us, e que é duro para Ele a perda de cada indivíduo. Além disso, ensina o Ramban que cada membro do povo judeu tinha o direito de se beneficiar da atenção particular de Moshé e Aharon, e as contagens eram uma grande oportunidade para isso. Para que a contagem fosse feita, todos precisavam comparecer perante Moshé, o "pai dos profetas", e seu irmão Aharon, uma das pessoas mais sagradas que já passaram pela face da Terra. Cada um dizia a eles seu nome, sentindo assim que era um indivíduo com um valor único e especial dentro do povo judeu. Certamente cada um recebia, através deste contato pessoal, uma poderosa influência espiritual positiva. Moshé e Aharon também aproveitavam a oportunidade para dar Berachá a cada judeu e rezar por ele. E, pelo fato de haver uma proibição de contar o povo judeu de uma forma direta, a contagem era feita através de uma moeda de prata, o "Machatzit Hashekel", que era utilizado na compra dos Korbanót, o que também trazia expiação para cada judeu que era contado. Finalmente, o Ramban explica que, uma vez que o povo judeu estava prestes a entrar na Terra de Israel, e isso teria realmente ocorrido caso não tivessem tropeçado no episódio dos espiões, então a contagem era tecnicamente necessária, para preparar a campanha militar, definindo a quantidade de combatentes disponíveis, além de levantar quantas pessoas estavam elegíveis para receber porções na Terra de Israel. Há outro detalhe interessante em relação à contagem do povo na linguagem utilizada pela Torá para descrever o comando de D'us para Moshé, pois está escrito "Faça as contas de toda a congregação dos Filhos de Israel" (Bamidbar 1:2). Em hebraico, a expressão "Faça as contas" é "Seú et Rosh", que literalmente significa "Levante as cabeças". O Ramban explica que essa expressão tem duas implicações possíveis, uma positiva e outra negativa. "Levante as cabeças" pode significar que as pessoas seriam elevadas e, através da contagem, chegariam a um nível mais alto. Porém, esta expressão também pode ter um sentido muito negativo, podendo significar que suas cabeças seriam retiradas. Essa mesma dualidade da expressão pode ser percebida quando Yossef previu que o copeiro chefe do Faraó seria salvo e restituído ao seu cargo, enquanto o padeiro chefe seria executado. Ao copeiro chefe ele disse: "Em três dias Faraó te contará (levantará sua cabeça)" (Bereshit 40:13), significando que o copeiro chefe estaria contado entre aqueles que serviriam o Faraó em seu aniversário. Já quando Yossef foi falar com o padeiro chefe, ele disse: "Em três dias o Faraó retirará (levantará) a sua cabeça" (Bereshit 40:19), significando que ele seria morto. Portanto, a mesma linguagem, "levantar a cabeça", foi utilizada para algo positivo e para algo negativo. Por que no caso da contagem do povo judeu D'us utilizou esta expressão com duplo sentido? Isso era um aviso ao povo judeu, de que se eles fossem dignos e cumprissem as ordens de D'us seriam muito elevados, mas caso não andassem nos caminhos corretos, eles poderiam sofrer muitas consequências negativas. Porém, talvez o detalhe mais interessante é a diferença entre a contagem feita na nossa Parashá e as contagens anteriores. Nas contagens anteriores, o povo judeu foi contado como um todo, sem reconhecer as identidades das Tribos separadas. Porém, a contagem feita na nossa Parashá é de acordo com as Tribos. O que esta diferença nos ensina? O Rav Yaacov Kamenetsky zt"l (Lituânia, 1891 - EUA, 1986) explica que uma contagem por Tribos logo após a saída do Egito levaria ao "nacionalismo" e dividiria o povo em facções, já que ainda não havia nada que os unisse. No entanto, uma vez que o Mishkan havia sido construído, todas as Tribos olhavam para ele como sua principal força unificadora. O Mishkan ficava no centro do povo judeu, tanto fisicamente quanto espiritualmente. A partir daquele momento, o estabelecimento de identidades Tribais separadas seria saudável para o povo judeu. Cada Tribo perceberia que suas habilidades individuais poderiam ser desenvolvidas para contribuir, de maneira única e especial, para a meta do povo judeu como um todo em seu Serviço espiritual. A separação representaria apenas que cada Tribo tinha papéis únicos para serem desempenhados na realização do potencial espiritual de todo o povo. Esse conceito nos conecta com a próxima Festa do Calendário judaico, Shavuót, o Chag Matan Torá. Quando o povo acampou para receber a Torá, eles estavam unidos, como explica Rashi: "como uma única pessoa em um só coração". Foi essa união, apesar das diferenças, que possibilitou a entrega da Torá. A contagem da Parashá ensina, portanto, uma importante lição para o povo judeu, principalmente diante do grande desafio que estamos passando atualmente. O povo judeu se dividiu em "facções", e a consequência é que surge até mesmo ódio gratuito por causa disso. Os judeus começaram a se identificar através de "rótulos", tais como "Judeu ortodoxo", "Ashkenazim", "Sefaradim", "Chassídicos". Ao invés de cada grupo respeitar os outros grupos e olhar as características e costumes positivos de cada um deles, que trazem uma contribuição única e especial para o povo como um todo, começam a ocorrer casos de discriminação e afastamento. Certamente não é isso que D'us quer de nós. Nossos inimigos, quando nos atacam, não fazem nenhuma distinção. Somos todos judeus, independente de qualquer rótulo. Nossa luta deve ser apenas contra o mal, contra o Yetser Hará, e dentro do povo deve haver apenas união e respeito. Pois, se foi isso que possibilitou a entrega da Torá no Monte Sinai, certamente será isso que possibilitará a vinda do Mashiach e a nossa Redenção final. SHABAT SHALOM R' Efraim Birbojm |
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Por favor, deixe aqui a sua pergunta ou comentário sobre o texto da Parashá da semana. Retornarei o mais rápido possível.